Príncipe desencantado
Príncipe desencantado
Mais de 15 brasileiras são mortas por dia no País, segundo o Ipea

Um
homem bonito, carinhoso e sempre disposto a fazer elogios e oferecer
mimos. Aos 16 anos, Glaucia Santos acreditou que havia encontrado a
pessoa de seus sonhos e não pensou duas vezes ao começar o namoro com o
“príncipe encantado” que ela havia conhecido durante uma festa. O rapaz
era cobiçado por outras moças e Glaucia se sentia feliz por ter sido a
escolhida.
No auge da paixão, ela só tinha olhos para o
namorado. Aos poucos, Glaucia foi se afastando de amigos e familiares
para dedicar mais tempo ao amado. Presentes e carinhos faziam parte da
rotina dos dois. O ciúme, também. “Ele começou a ir me buscar na porta
do colégio e não gostava que eu conversasse com outros homens, até com
primos. Também fui me afastando das minhas amigas. Eu achava que o ciúme
era normal, pensava que ele iria mudar quando me conhecesse melhor”,
relembra.
Para Glaucia, o ciúme significava uma “preocupação
em perder a mulher amada”. À medida que passava mais tempo com o
namorado, ela começou a perceber que o rapaz esboçava sinais de
agressividade: “A primeira vez que ele me empurrou eu fiquei surpresa,
mas ele me pediu desculpas e me encheu de beijos”. Aos poucos, o
príncipe encantado virou monstro. “Comecei a dormir na casa dele e via
algumas coisas erradas. Quando eu perguntava o que estava acontecendo,
ele era agressivo, xingava, mandava eu calar a boca. Às vezes ele
trancava a porta e não deixava eu ir embora, me obrigava a passar a
noite lá”, diz, acrescentando que descobriu naquela época que ele era
traficante de drogas.
As agressões verbais se transformaram
em agressão física que deixavam marcas roxas pelo corpo da moça. A cada
abuso, a autoestima de Glaucia diminuía um pouco mais e ela se via cada
vez mais presa ao relacionamento. “Quando eu soube das atividades dele,
quis terminar o namoro, mas ele me ameaçava e eu tinha medo”, relata. O
relacionamento durou cerca de um ano e sete meses e só terminou após
mais um episódio perverso. “Um dia, depois de uma briga, ele me
violentou sexualmente na frente de outros homens e ainda me ameaçou
dizendo que eles fariam o mesmo comigo”, finaliza.
Vida nova

Após
finalmente conseguir fugir das agressões, Glaucia passou a ter
“aversão” a homens. Foi nesse período que conheceu o atual marido,
Rudnei Gomes. Ela morava em Guararema, no interior de São Paulo, e ele
trabalhava na área de hotelaria da mesma cidade. “Eu estava caminhando
na rua e a gente se viu. Entramos por acaso no mesmo comércio e
conversamos um pouco. Começamos uma amizade e contei minha história. Ele
frequentava a Universal e quis me ajudar a superar o trauma das
agressões”, fala.
Os dois foram se conhecendo aos poucos. O
caráter e o respeito que Rudnei demonstrava foram as características que
mais chamaram a atenção de Glaucia. “Ele me respeitava muito. Quando
decidimos começar a namorar, ele quis conhecer meus pais, foi algo
totalmente diferente”, analisa. Hoje, eles estão casados há 14 anos e
têm uma filha, Laura, de 12 anos. “Aprendi que amar é cuidar, respeitar o
outro. Ciúme não é cuidado. A gente precisa conhecer muito bem a pessoa
com quem está se relacionando, observar os sinais de violência. Aquela
coisa que fere e que machuca não é legal. Não vale a pena insistir em um
relacionamento assim”, finaliza.
Fim da violência
Glaucia
passou pelo ciclo de violência experimentado por muitas brasileiras. O
problema costuma começar com cenas de ciúme e discussões e às vezes só
termina com a morte da mulher. Mais de 50 mil mulheres foram
assassinadas no Brasil entre 2001 e 2011, segundo o estudo “Violência
contra a Mulher: feminicídios no Brasil”, divulgado pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2013. A estimativa é que mais de
15 mulheres morram por dia vítimas de violência de gênero. A maioria das mortes ocorreu dentro de casa e foi praticada por companheiros.
Para
quebrar esse ciclo, é fundamental que alguém faça uma denúncia. O
alerta é da delegada de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro Soraia
Vaz de Sant’Ana. “A denúncia é um instrumento de cidadania, qualquer
pessoa que saiba de casos de violência doméstica deve denunciar, como
vizinhos, parentes, amigos e conhecidos. A vítima muitas vezes não
denuncia por medo ou culpa, ela está numa relação de dependência
emocional e/ou financeira com o agressor”, afirma.
A
delegada, que já foi responsável por delegacias especializadas em
atendimento à mulher, diz que o combate à violência deve envolver toda a
sociedade. “A escola e a família devem estar comprometidas a criar uma
cultura de respeito à mulher. Mães e pais precisam ensinar as crianças a
respeitar as mulheres. Em muitos casos, os agressores viveram em lares
violentos e viram a própria mãe sendo massacrada dentro de casa, esses
homens cresceram acreditando que são donos da mulher”, analisa,
acrescentando que muitos agressores devem passar por acompanhamento e
tratamento psicológico.
Problema cultural

O
Brasil tem a terceira melhor legislação do mundo no combate à violência
doméstica, segundo as Nações Unidas. Criada em 2006, a Lei Maria da
Penha (Lei nº 11.340) aumentou as penas para agressores e determinou o
encaminhamento das vítimas a programas e serviços de proteção e de
assistência social. Hoje, todo ato praticado com violência doméstica e
familiar contra a mulher é crime e não se permite mais a aplicação de
penas brandas como multa e cesta básica. Ou seja, o agressor pode ir
para a cadeia.
Na prática, entretanto, a Lei Maria da Penha
enfrenta dificuldades para ser cumprida, como despreparo de alguns
profissionais, falta de estrutura em alguns estados, medo, vergonha e
falta de apoio de familiares. É o que explica Carlinda Tinôco Cis,
coordenadora nacional do Raabe, grupo da Universal que oferece ajuda a
mulheres vítimas de violência.
Carlinda destaca que o
desrespeito às mulheres faz parte da cultura de muitos brasileiros. “A
Lei Maria da Penha é completa, mas fica insuficiente quando o agressor
se sente no direito de agir de forma livre. A mulher continua sendo
perseguida e muitas chegam à morte. A nossa sociedade culturalmente
ainda é machista, tem homens que não sabem que o que estão fazendo é
crime. O homem que ama de verdade cuida, esse que bate em mulher não tem
amor-próprio e muito menos pela esposa que está ao lado dele”, afirma.
Mulheres querem fim do silêncio

Ajudar
mulheres que estão em risco: foi com esse objetivo que mais de 2 mil
voluntárias do projeto Raabe ocuparam as ruas de várias cidades
brasileiras, no último dia 25 de novembro. Idealizado pela escritora e
apresentadora Cristiane Cardoso, o evento marcou o Dia Internacional de
Luta pela Eliminação da Violência Contra a Mulher.
Com
camiseta branca e panfleto na mão, cada voluntária tinha a tarefa de
oferecer apoio e orientação a mulheres vítimas de violência doméstica e
outros tipos de agressões. As pessoas atendidas receberam rosas
vermelhas e foram convidadas a participar de uma reunião especial,
marcada para 14 de dezembro em todas as Universal.
Em São
Paulo, a data também marcou o encerramento de um ciclo de atividades que
durou 16 dias. Nesse período, mais de 400 voluntárias do Raabe e do
Godllywood percorreram ruas, pontos de ônibus, trens e comunidades
alertando mulheres sobre a violência doméstica.
“O Projeto
Raabe abraça a mulher e cuida dela até que ela possa caminhar com os
próprios pés. Enquanto a gente não vê resultado, a gente não desiste,
mesmo que a mulher caia muitas vezes. O Raabe é paciente e é ouvinte
para cuidar”, explicou Carlinda, presente ao evento em São Paulo.

Além
do apoio das voluntárias, o evento também contou com a presença de
advogadas, conselheiras e assistentes sociais, que ofereceram
aconselhamento gratuito nas tendas montadas pelo projeto. “Essa é uma
oportunidade fundamental para que a gente possa levar informação às
mulheres. Muitas vezes, elas ficam tão desorientadas que não sabem nem
qual serviço procurar. Esse trabalho também é uma forma de reforçar a
questão da autoestima, pois, uma vez que a mulher se empodera de seus
direitos e recupera a autoestima, ela consegue sair da situação de
violência”, relatou a assistente social Arlete Lima, que atuou na Praça
da Sé, em São Paulo.
O evento também marcou o lançamento
oficial do símbolo do Raabe, o laço vermelho, que pôde ser visto em
botons pregados nas camisetas de todas as participantes. “Ele expressa a
liberdade de sofrimentos, de traumas, de problemas familiares, é o
recomeço”, concluiu Carlinda.
Promotora alerta para ignorância dos homens

Acostumada
a acompanhar casos de violência doméstica, a promotora de Justiça Maria
Gabriela Manssur percebeu que muitos homens voltavam a cometer o mesmo
crime. Para tentar mudar essa situação, ela criou em Taboão da Serra
(SP) o projeto-piloto Tempo de Despertar, um curso para homens
agressores. O projeto tem apoio do Ministério Público de São Paulo e do
Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de
Taboão da Serra. Maria Gabriela conversou com a Folha Universal após
seminário promovido pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social
(Seds) de São Paulo.
Folha Universal: Por que criar um curso voltado aos agressores?
Maria
Gabriela: É uma nova visão. O trabalho com agressores é parte
importante do combate à violência contra a mulher. Nosso objetivo é
conscientizar esses homens, levá-los a fazer uma reflexão sobre os atos
cometidos para que eles não voltem a praticá-los. A lei não anda
sozinha, ela precisa estar de mãos dadas com a educação. Então,
precisamos levar informação sobre os direitos da mulher para agressores e
também para os jovens em geral. Em 2015, vamos ampliar o curso para
outras cidades do Estado de São Paulo.
FU: O curso inclui palestras com psicólogos, delegados e policiais. O que é ensinado?
Maria
Gabriela: Os encontros discutem o desrespeito às mulheres, a Lei Maria
da Penha, os direitos da mulher, sexualidade, uso abusivo de álcool e
drogas. Muitos nunca tinham ido a um psicólogo. Também procuramos
entender se esse homem está em situação de vulnerabilidade e oferecemos
ajuda aos que estão desempregados, os encaminhamos a cursos, para
acompanhamento psicológico e ao tratamento de drogas e álcool.
FU: Qual foi a reação dos homens ?
Maria
Gabriela: No início, alguns não gostaram, diziam que não eram
criminosos. Mas 75% deles compareceram em todos os sete encontros e
participaram dos debates. Tivemos resultados positivos, eles conseguiram
se conscientizar sobre a necessidade de respeitar as escolhas da
mulher, percebi uma mudança no comportamento deles. Espero que os homens
possam despertar para uma nova vida com mais amor e sem violência.
Atenção, isso também é crime
Agressões
físicas e sexuais são as ações mais conhecidas quando se trata de
violência contra a mulher. Mas existem outras que podem levar agressores
para a cadeia. Confira:
• perseguir e ameaçar a mulher
• xingar, insultar e agredir verbalmente
• difamar a mulher no trabalho dela ou em outros locais
• impedir a companheira de sair de casa ou de trabalhar
• esconder ou destruir documentos da mulher
• forçar a companheira a manter relação sexual – isso é estupro!
• destruir móveis da casa ou roupas e outros pertences da mulher
• obrigar a mulher a atos humilhantes
Fonte: Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006)
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